Latin American Liberation Theology
“Liberation theology” foi o nome dado a uma espécie de teologia que surgiu no final dos anos 60 e início dos anos 70 na América Latina. Exigia uma reavaliação radical da teologia, das obras pastorais, e da própria Igreja Católica. A Igreja e o seu clero tinham historicamente coexistido com — ou moralmente autorizado — escravidão, conquista, colonialismo, e neocolonialismo. No final dos anos 60, isto já não era tão politicamente, e muito menos eticamente, tolerável. As guerras anticoloniais e as lutas de libertação nacional tinham irrompido por toda a Ásia, África e América Latina, uma vez que o “Terceiro Mundo” veio a significar um projecto anti-imperialista para construir um mundo baseado na equidade, solidariedade, e soberania.
No meio destes tempos revolucionários foi convocado o Concílio Vaticano II, coloquialmente conhecido como Vaticano II (1962-65), do qual saiu um apelo a uma Igreja Católica mais “mundana”. O clero do Terceiro Mundo deixou claro, contudo, que uma Igreja mais “mundana” não era apenas uma Igreja em que os padres usavam menos regalia ornamentada e celebravam Missa em línguas vernáculas (em vez do latim). Uma Igreja “mais antiga do mundo” deveria ser aquela que contava solenemente com questões terríveis no mundo, das quais não menos importante era a pobreza.
Em 1968, os Bispos latino-americanos reuniram-se em Medellín, Colômbia, para dar corpo ao “espírito” do Concílio Vaticano II. Dessa conferência surgiram declarações que rejeitavam a pobreza como o lote de povos moralmente ou intelectualmente inferiores. Concluíram antes que a pobreza era uma espécie de “violência institucionalizada” e que as nossas vidas são vividas numa situação de “pecado social”, na medida em que podemos, mas colectivamente optamos por não erradicar a pobreza. A escolha cristã adequada é “optar pelos pobres” (Ellacuría e Sobrino, 1994).
Estas percepções e intuições foram mais rigorosamente provocadas no que se tornou o texto emblemático do movimento, A Theology of Liberation (1971), do padre peruano Gustavo Gutiérrez. Para Gutiérrez, não era suficiente abordar a pobreza e outros males sociais nos termos tecnocráticos e espiritualmente vagos do “desenvolvimento”. Em vez disso, Gutiérrez apelou à “libertação”, pelo que ele se referia não só à libertação das estruturas económicas e políticas repressivas, mas também à libertação do pecado. A libertação enquanto tal equivale a um projecto para uma “nova humanidade”, que Gutiérrez colocou conscientemente em diálogo com o conceito (ateu) de Ernesto Che Guevara (1965) do novo homem e mulher socialista. Essa nova humanidade seria aquela que responde ao apelo cristão de vestir os nus, alimentar os famintos, acolher os estranhos e cuidar dos doentes. De facto, para Gutiérrez, qualquer que seja o valor analítico da teoria social e política marxista, a teologia da libertação e a sua práxis devem ser alimentadas por textos bíblicos e pela esperança utópica na salvação. A teologia da libertação pode olhar para a narrativa do Êxodo de um Deus que ouve o grito do seu povo oprimido e o conduz para fora da escravidão (egípcia); os profetas do Antigo Testamento (isto é, Amós, Jeremias, Isia, etc.).) que enganam a exploração dos pobres e convocam os seus companheiros israelitas para cuidar do órfão, da viúva e do estrangeiro; os Evangelhos, com ênfase nos ensinamentos de Jesus para amar o próximo e com um divino que escolheu encarnar na carne de um humilde trabalhador (carpinteiro) que é preso, torturado e executado por elites corruptas e um poder imperial; e os Actos dos Apóstolos, que partilharam os seus bens e viveram em comum.
Em termos concretos, isto significava novas obras pastorais e uma nova Igreja. Uma Igreja despertada pela teologia da libertação seria uma Igreja que denunciou profeticamente as injustiças e evangelizou a fim de aumentar a consciência (concientización), tomando as suas sugestões da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (1968) tanto como da Bíblia. As classes populares e empobrecidas aprenderiam que a sua miséria é estruturalmente induzida e repressivamente aplicada; que tal miséria é uma ofensa a Deus, em cuja semelhança e imagem todos são feitos; e que têm a capacidade de construir colectivamente um mundo governado pela esperança e pelo amor. O clero foi assim chamado a ser “pobre de espírito”. Per Gutiérrez (1971), isto significava não apenas renunciar aos bens mundanos e entregar-se a Deus, mas viver em solidariedade com os pobres e falar contra a pobreza. Assim também se esperava que a Igreja repensasse as suas estruturas, quer isto significasse vender os seus bens, descentralizar a sua autoridade, ou ordenar mulheres como sacerdotes. De facto, os frutos da teologia da libertação incluíam um movimento para fundar uma “Igreja popular”. As comunidades cristãs de base (também referidas como comunidades eclesiais de base) floresceram durante os anos 70 e 80, mais especialmente no Brasil, El Salvador, e Nicarágua. Organizadas de base e dirigidas por leigos, reuniam famílias e bairros economicamente marginalizados para discutir e resolver os seus problemas à luz da práxis de libertação. Já não se tratava de um paroquiano ou de uma vítima, mas de um ministro leigo que participou em estudos, orações, deliberações e trabalhos “salvíficos” que deram poder aos impotentes. Como disse o teólogo brasileiro Leonardo Boff (1985), as comunidades de base constituíam uma Igreja de e com os pobres, e não apenas uma Igreja para os pobres.
O Brasil esmagadoramente católico e desigual provou ser um solo fértil para a teologia da libertação, com uma estimativa de 70.000 comunidades de base e defensores tão corajosos e de perfil tão elevado como o Cardeal Paulo Evaristo Arns, carinhosamente conhecido como Dom Paulo. A Igreja no Brasil decretou as violações dos direitos humanos do Estado de segurança nacional e tornou-se um asilo para os perseguidos politicamente. A coligação da Unidade Popular do Chile de Salvador Allende (1970-73) também recebeu cordialmente os talentos e endossos dos cristãos progressistas, incluindo oitenta padres católicos (o “Grupo dos 80”) que optaram abertamente pelo socialismo. Com a Revolução Sandinista na Nicarágua (1979-1990), a teologia da libertação assumiu o governo, com os padres Miguel D’Escoto como Ministro dos Negócios Estrangeiros e Ernesto Cardenal como Ministro da Cultura. Também foi artisticamente expressa em murais sandinistas, poesia e música, tais como os Salmos de Luta e Libertação de Cardenal (1964) e a nueva canción Misa campesina nicaragüense de Carlos Mejía Godoy. No Haiti, a teologia da libertação encontrou um orador eloquente no padre salesiano Jean-Bertrand Aristide (1990), que foi eleito presidente em 1990.
Mas nem a hierarquia eclesiástica nem as elites políticas e económicas tiveram a gentileza de recorrer a uma teologia familiarizada com a análise marxista e a política socialista. Os críticos descartaram-na como uma teologia que, na melhor das hipóteses, manchou a fé com a política ou, na pior das hipóteses, tolerou a “luta de classes” e a violência. O padre colombiano Camilo Torres, que se juntou às forças guerrilheiras e morreu em combate (1966), foi rotineiramente citado como um escândalo deste tipo. O Cardeal Joseph Ratzinger (mais tarde Papa Bento XVI), oficial do Vaticano, emitiu a sua infame “Instrução sobre certos aspectos da Teologia da Libertação” em 1984, alertando para os “graves desvios” que a teologia da libertação representava e para as “tentações” marxistas às quais caiu presa. Nem o Papa João Paulo II, que saudou da Polónia soviética, teve a bondade de levar a teologia da libertação. Na sua visita à Sandinista Nicarágua em 1983, repreendeu publicamente Ernesto Cardenal, uma imagem que circulou pelos meios de comunicação social financiados por empresas de todo o mundo, e em 1985 silenciou Leornado Boff. Os seus actos mais consequentes foram, contudo, a nomeação de bispos conservadores em toda a América Latina (Berryman 1987, 108-110).
A repressão da teologia da libertação para além da hierarquia da Igreja foi, no entanto, muito mais viciosa. Várias estações de rádio, boletins informativos, bispos, padres e freiras simpatizantes da teologia da libertação foram bombardeados, censurados, perseguidos, expulsos, presos, torturados, desaparecidos ou assassinados entre as décadas de 1960 e 1980 em toda a América Latina. Provavelmente em parte alguma isto foi tão visceralmente verdadeiro como em El Salvador. Aqui, o Arcebispo Oscar Romero foi abatido a tiro enquanto entregava a missa em 1980; três freiras americanas e um missionário foram violados e assassinados em 1980; e o teólogo e reitor jesuíta Ignaio Ellacuría foi assassinado com outros cinco padres na Universidade Centro-Americana em 1989. Os Estados Unidos também não eram um aliado da teologia da libertação. A política externa de Ronald Reagan enquadrou-a como uma “arma contra a propriedade privada e o capitalismo produtivo” (Berryman 1987, 4).
O legado da teologia da libertação da América Latina é, no entanto, rico. Na sua esteira surgiram iterações da teologia da libertação judaica (Ellis 1989), teologia da libertação palestiniana (Ateek 2017), teologia da libertação islâmica (Dabashi 2008), teologia mujerista e feminista (Aquino 1993; Isasi-Díaz 1996), teologia da libertação negra (Cone 1970 & 1975), teologia minjung na Coreia (Kim & Kim 2013), e teologia Dalit na Índia (Rajkumar 2016). A teologia da libertação chegou mesmo a Fidel Castro em Cuba oficialmente ateísta. A entrevista de Frei Betto com o ícone revolucionário, Fidel e Religião (1985), tornou-se um bestseller internacional. Nela, o instruído jesuíta Fidel salientou que o credo do cristianismo de serviço aos outros, humildade, austeridade, compaixão e martírio tinha muito mais em comum com o comunismo do que com o capitalismo. No início dos anos 90, Cuba foi declarada um estado laico e o ateísmo já não era um pré-requisito para aderir ao Partido Comunista Cubano. Hugo Chávez descreveria mais tarde a Revolução Bolivariana da Venezuela (1998-) como nutrida ideológica e espiritualmente por Simón Bolívar, Karl Marx, e Cristo Redentor. Os escritos de Gustavo Gutiérrez e a vida exemplar inspiraram o médico Paul Farmer a fundar a Partners in Health (1987-), uma organização baseada na justiça social que serve e acompanha os doentes do Sul Global. No Brasil, o Cardeal Arns, Frei Betto, e os católicos progressistas serviram como consultores morais e protagonistas do Partido dos Trabalhadores, cujas políticas de bem-estar social tiraram milhões da pobreza abjecta. Teólogos e padres como Frei Betto, Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino (em El Salvador), e Leonardo Boff continuam a escrever e a falar publicamente. Boff (1997) em particular apelou a uma teologia da libertação que testemunha o “grito da terra” – um grito evidentemente ouvido pelo Papa Francisco, o primeiro Papa latino-americano (inaugurado em 2013) na história da Igreja. Embora não esteja abertamente afiliado à teologia da libertação, a encíclica do Papa Laudato Si (2015) refere-se ao sistema mundial capitalista como “estruturalmente perverso” e apela a “pessoas de boa vontade” para se libertarem de um “mercado desafiado” e de um “paradigma tecnocrático” que não abraça amorosamente “a criação de Deus” (i.e. os animais e o ambiente) como fez São Francisco de Assis.
p>Que dizia, é questionável se a Bíblia e o Cristianismo devem constituir uma vanguarda para a política verde. Outras cosmologias e tradições espirituais têm provado ser muito mais ricas em recursos. Os movimentos “buen vivir/sumak kawsay” (Acosta 2013) e “vivir bien/suma qamaña” (Huanacuni 2010) do Equador têm posicionado de forma mais convincente os horizontes pós-capitalistas para “viver bem” e de forma mais harmoniosa com Pachamama (Mãe Terra). Isto também levanta a questão da fixação da teologia da libertação no cristianismo numa região onde as religiões ameríndias e africanas diásporas prosperam, não por acaso, entre os pobres. Os críticos têm argumentado que a teologia da libertação latino-americana ainda não olhou significativamente para Lucumí (Cuba e Porto Rico), Candomblé (Brasil), ou Vodou (Haiti) como recursos para uma séria investigação teológica e praxis emancipatória (Torre 2004). O facto destas fés estarem tão intimamente ligadas à história dos africanos escravizados e dos seus descendentes nas Américas não é um pormenor ocioso. É uma religiosidade que durante gerações dignificou e deu poder aos socialmente estigmatizados e economicamente explorados. A teologia da libertação também não perdeu satisfatoriamente o seu perfil “masculino”. Quase todos os seus teólogos, profetas, e mártires são homens. A tendência, além disso, tem sido a de circunscrever as mulheres e a Virgem Maria dentro do reino dos cuidados (maternais), devoção e compaixão – ou seja, um relato essencialista do “feminino” (Boff 1987). Os teólogos feministas, pelo contrário, têm oferecido relatos mais matizados das profetisas e das mulheres discípulas da Bíblia (ou seja Miriam, Deborah, Judith, Mary Magdalen) e apelaram aos seus colegas e parentes leigos para que contassem mais seriamente com a sexualidade, os direitos reprodutivos das mulheres, e a ordenação das mulheres como sacerdotes – todos temas teimosamente “tabu” dentro da hierarquia da Igreja Católica e seminários teológicos (Aquino & Rosado-Nunes 2007).
Se a teologia da libertação pode ser revitalizada como uma teologia eficaz para o Sul Global do século XXI está sujeita a debate. Em resposta às críticas de que se tratava de pseudo-política, muitos aderentes procuraram legitimá-la como teologia própria. Isto elevou-se, argumenta o teólogo argentino Iván Petrella (2004), a uma teologia mais preocupada com a exegese escriturística do que com a práxis emancipatória. O facto de ter sido retomada por intelectuais e instituições da classe média (alta) do Norte Global não é menos digno de nota. Como Petrella observou, a teologia da libertação enquanto tal está mais intimamente alinhada com a política de identidade e quase rejeitou a análise da economia política e dos horizontes “materiais” da libertação. A teologia da libertação continua no entanto a ser uma referência saliente para a teoria crítica e o “imaginário resistente” que é o Sul Global (Mahler 2017). Pois já não é esse imaginário como estava ligado ao marxismo ateu ou ao liberalismo burguês secular como era outrora. Hoje, a práxis libertadora e as suas “opções descoloniais” (Mignolo 2011) são cada vez mais intrigantemente pós-seculares.
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